Igor Cruz visitou Havana e Trinidad, em Cuba, com sua esposa, Kátia, no meio do ano passado, e contou sua experiência aqui de uma maneira bem pessoal. Seu relato está dividido em duas partes, cada uma falando de uma das cidades. Leia aqui o relato sobre Trinidad.
Havana: Cuba e o imaginário coletivo
Oito dias não são suficientes para contar como é ou como funciona Cuba, este mítico país que insiste em remar contra a maré do mundo, em seu sistema político e econômico. Mas vale a experiência de caminhar por uma terra sustentada essencialmente por preconceitos externos.
E no alinhavar das ruas, derrubam-se as barreiras do senso comum, principalmente quando nos deparamos com um atendimento excelente para os padrões turísticos do mundo.
Acredite, ser atendido por um cubano tem algo de muito especial. Não consigo viajar sem carregar comigo um olhar antropológico do modus vivendis do local visitado. Por isso, atentei-me principalmente às pequenas coisas do cotidiano turístico cubano, sem deixar de observar o papel do turista que circulava por lá.
Neste relato você não encontrará “tire visto aqui”, “hospede-se ali” ou “não deixe de visitar a masmorra tal”. Todos os outros blogs já o fazem. Aqui, a viagem começou com a decisão de chegar à Ilha, meses antes.
Havana
Ao desembarcar em Havana, tivemos a primeira decepção. Mas antes, é importante o viajante saber que não há voos sem turbulências, nem pousos perfeitos. Por isso, a frustração não pode estar na bagagem.
Voltando ao desapontamento inicial, por ironia, nossa mala teve o zíper estourado, provavelmente pelo delicado manuseio dos profissionais que abastecem o bagageiro do avião. O curioso é que percebemos de longe o ocorrido e antes que puséssemos as mãos em nosso equipamento usurpado, uma funcionária cubana da Avianca se adiantou e ofereceu rapidamente atendimento aos olhos preocupados com o possível primeiro prejuízo da trip que mal começava.
Fomos levados até uma sala de atendimento da empresa no aeroporto e em menos de dez minutos tínhamos – mesmo com qualidade inferior – uma nova mala substituta. O que nos aliviou e construiu a nossa primeira impressão sobre como o turista é recepcionado na Ilha.
Ao solicitar um táxi para que nos levasse até o próximo capítulo, a hospedagem (um misto de hostel e casa de família cubana), o silêncio de quem estava exausto após uma longa viagem, passava despercebido ao motorista, que insistia em ser simpático.
A casa, reservada com certa dificuldade pela internet, fica em Havana Vieja, um bairro ao lado do Centro. Uma residência de familiares com vários quartos adaptados, no final periférico daquele distrito.
Bibelôs por toda parte dos cômodos, como se os donos fossem colecionadores de peças antigas da antiga colônia espanhola. No quarto, não era diferente: espelhos com molduras de madeira, criados-mudos e camas bem conservados, trabalhados em art noveau dourados.
Banheiro simples com água morna – que nunca era usada devido ao calor caribenho – nos satisfez.
O cansaço ficara secundário, porque queríamos mesmo era ver a rua, as muitas pessoas caminhando pelas estreitas vias, o “converseiro”, etc. Então, logo depois de conferir os outros espaços daquela casa que dispunha até de um grande terraço para uso coletivo, fomos pisar naquele solo nada sagrado.
Havana Vieja talvez seja a primeira periferia fora do Centro da capital. Ao primeiro olhar impressiona, principalmente para um paulistano desconfiado. Crianças brincando nas ruas, descalças, sem camisa. Adultos também nas ruas, debruçados em mesas e cadeiras, jogando dominó. Cães e gatos, uns saudáveis, outros moribundos, correndo e bulindo uns aos outros, entre os transeuntes que aparentavam sem destino.
A consulta sobre violência urbana já havia sido feita, logo, nossa vestimenta passava a compor máquina fotográfica no pescoço, chapéu e protetor solar, para desbravar com olhos atentos aquela imagem que lembrava o Rio de Janeiro, só que mais inocente.
Ora, porque um cubano roubaria uma máquina fotográfica digital se não há um mercado paralelo? Além disso, seu uso é restrito às tecnologias disponíveis e o conhecimento para o seu manuseio talvez não tivesse ainda ao alcance da população. E também, não há o que roubar se não há o desejo de ter.
Caminhar embaixo daquele sol é sofrido, mas vale cada minuto. Fiquei impressionado com o “mundarel” de gente de todo o mundo circulando pela linda e velha Havana.
Passado primeiro dia de observação, um sono tranquilo e necessário nos leva ao bem servido e atencioso café da manhã. Conversamos com um dos donos da casa – que é oftalmologista – e nos sentamos com outros hóspedes de diversas partes do mundo.
Estávamos entre neozelandeses, franceses, brasileiros, ingleses e holandeses. Mas é engraçado o tratamento do europeu, no geral. Ele diz “good morning” e na saída, “have a nice day”. Todos se falam e a pergunta mais comum é “are you from”. Com exceção dos franceses, claro, que dizem “bon jour”, falam entre eles e não puxam muito assunto com os demais.
Nenhum deles se esforçou o mínimo para dizer “buenos días” aos anfitriões. Com exceção de mim, que sou latino e sem-vergonha.
Precisamos falar sobre a comida cubana. Esta, de fato, não me conquistou. A comida para o turista é cara e é preciso estar atento (e forte) ao sentar-se para um rango que o recomponha das andanças quilométricas diárias. A moeda para o turista é o CUC, equivalente ao dólar. Um prato de 20 dólares, não muito bem servido, para brasileiros, pode sair caro.
Todos sabemos que a comida produzida ali é orgânica, pois não há agronegócio. A agricultura de subsistência mais os altos impostos do governo, deixa a comida mais cara, porém, mais saudável e incrivelmente estranha ao nosso paladar. O tempero é bom, mas a consistência requer adaptação. A variedade não é tanta, já que a nossa referência é bem maior. Tem arroz, tem feijão, tem paella, tem mariscos, lagosta, carnes bovina e suína, etc. Só não consigo aqui, oferecer AQUELE destaque culinário.
Após dias e dias de passeio, museus visitados, Malecón, hotéis e de medir a passos a Calle OBispo, que na minha opinião é rua mais charmosa da cidade, é chegada a hora do turista ser golpeado.
Muita gente oferece charuto. Abordam-nos com a maior simpatia do mundo, oferecem-nos shows gratuitos, danças típicas, outras atividades culturais e informações sobre a cidade e o país, até que surge a pergunta: “te gusta charutos?” Ao titubear a resposta, você é conduzido até um local onde se possa apreciar “la mejor calidad…” blá, blá, blá…
Fui conferir, sem a minha companheira de fé e viagens, o que o garoto simpático tinha para oferecer. Chegando a uma casa mal acabada, na rua periférica da velha Havana, fui levado à cozinha, onde havia uma cubana ao lado da mesa com uma seleção de charutos de diversas marcas, coberta com uma tolha branca.
Ao descobrir os prováveis produtos clandestinos, a apresentação: “este aqui, era o preferido do Chê, este o de Fidel…” e por aí foi. Até que, tanto pelo preço (não é nada barato), quanto pelo desinteresse, deixei claro que não me interessava e que na verdade, gostaria de apreciar um, oferecendo-me então, para a breve aquisição e me ver livre dali logo, já que a abordagem e a insistência me deixava receoso.
Foi quando a porta da casa foi tocada com certa violência e por segundos pensei em ser a polícia. A mulher rapidamente cobriu os charutos e a porta se abriu. Era a Kátia, preocupada comigo, que bradava em espanhol junto ao fio de sol que entrava naquela cozinha, “vamos ahora, Igor”. Imediatamente saí em direção à rua e o companheirinho cubano seguiu comigo, reclamando algo do tipo, “ela não gostou de mim”.
Passado o susto, a bronca tomada, foi a hora de nos preparar para a próxima aventura.
Leia a segunda parte do relato, em Trinidad
De volta à Havana
Mais uns dois dias em Havana, para batermos as últimas pernas, comprarmos lembrancinhas, livros, pôster, etc. Depois dos dias que mais pareceram um mês naquele país, saí com palavras-chave que resumiriam este longo texto: beleza, contradição, simpatia, calor, amor, revolução, história, música, preconceito, agradecimento, pouquíssima tristeza e demasiada alegria no meu peito e no rosto de cada cubano. Voltarei.
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- Havana, em Cuba – Foto: Igor Cruz
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Leia a segunda parte do relato, em Trinidad
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1 Comentário
Trinidad: Cuba e o imaginário coletivo (parte 2/2) | Viagem Primata Viagem Primata
12 de setembro de 2016 às 02:10[…] Igor Cruz visitou Havana e Trinidad, em Cuba, com sua esposa, Kátia, no meio do ano passado, e contou sua experiência aqui de uma maneira bem pessoal. Seu relato está dividido em duas partes, cada uma falando de uma das cidades. Leia aqui o relato sobre Havana. […]